Rallentando
Ela vestia a camisolinha branca do avesso, com babados no final e sentia-se feliz. Ela gostava de pensar na camisola do avesso, como se a camisola estivesse do lado certo e ela é que estivesse virada. A camisola a tinha vestido do lado contrário, a camisola acordava e vestia a menina e as costuras ficavam à vista. E então camisola branca de babados e menina, do avesso, levantavam-se da cama preguiçosa e iam sonâmbulas passear pelo jardim. Ela andava pelo meio do roseiral todo pingado de sereno. Era ainda manhãzinha e no curral, bem longe, ela ouvia a vaca mugir. Vez em quando ela calçava as botas e ia ajudar a ordenhar, para ter o gosto de ver o leite levantando espuma dentro do copo. O leite muito branco. Ela apertava as tetas quentes da vaca assim, assim, tinham lhe dito que um dia ela cresceria, não seria mais menina e os homens olhariam para ela e lamberiam os beiços e quereriam por-lhe as mãos como agora ela colocava as dela, tão pequenas, nas tetas da vaca, quentinhas. Eles quererão pegar nas suas tetas, eles lhe tinham avisado. Ela olhou para baixo, puxou um pouco o tecido da camisola e verificou: não, por enquanto não.Por enquanto, ela tomaria o leite espumando branco dentro do copo de vidro e quando chegasse ao fim, olharia para o mundo através dessa sua luneta infantil e lamberia o bigode branco pra dentro da boca. Ela via o mundo e o mundo era feito de rimas e brinquedos de roda. Talvez quando ela crescesse, ela deixaria de acreditar na luneta e nas estrofes e deixaria de querer compreender o mundo desde o fundo de um copo de vidro. E compreenderia tudo melhor, ela era míope da realidade e não sabia, ela não conhecia Miguilim. Por agora, ela seguraria nas tetas rosas e sentiria morno, morno debaixo do cobertor da cama preguiçosa.
Ela andava pelo meio do roseiral. Ela cheirava as flores, cutucava-lhes os miolos com as pontinhas dos dedos, como se fossem eles a machucá-las, não as rosas a eles. Ela sentia o perfume e aspirava mais, ela aspirava o rapé que morava dentro das rosas. Fazia manhãzinha bem cedo, manhãzinha friinha com nuvens que desciam até o roseiral para fingir de céu que as mãos da menina alcançavam e levavam à boca, para provar o gosto. Depois ela lambia os beiços de novo e limpava o bigodinho branco de nuvem. Era nublado no quintal da avó, era nuvem espalhada pelo chão, eram terra e plantas e homens e silêncio molhados de sereno. Ela andava de braços abertos, correndo o perigo dos espinhos de um lado e do outro, nas palmas das mãos. E deitava-se na terra serena orvalhada, com a camisola branca. Rolava um pouquinho por cima do estrume que cobria a cama das roseiras, a coberta morna das rosas, ela brincava de flor, de jardim. De vez em quando, chovia. Chovia fininho pra não atrapalhar o brinquedo, e ela ficava quieta sentindo frio, depois secava no sol. Ela ficava quieta, sem mexer nem um tantico e depois levantava e corria. Ela dançava brinquedos de roda no roseiral.
De vez em quando, ela acordava assustada. Puxava de novo a camisola, ainda do avesso, olhava para baixo, para ali, acima da barriga, e olhava: não há mais tempo para o por enquanto. Ela sentia a paina de dentro do travesseiro, macia e branca, escondida na fronha, tirava debaixo dele um vidrinho de perfume. Girava a rosca, com cuidado para não derramar. Segurava o frasco perto do nariz e aspirava. Ela tinha guardado um pouco da chuva da infäncia. Ela cheirava a saudade guardada no frasco. Ela lembrava, lembrava friinho. E a neta entrava no quarto e dizia, baixinho, com voz de medo de acordar cedinho: Vó, tô indo brincar no quintal. Ela lembrava quentinho, debaixo do cobertor.
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